terça-feira, 21 de abril de 2009

Refeição em família
ROSELY SAYÃO

Os meios de comunicação, devidamente apoiados por informações científicas, dizem que alimentação é uma questão de saúde. Programas de TV ensinam a comer bem para manter o corpo magro e saudável, livros oferecem cardápios de populações com alto índice de longevidade, alimentos ganham adjetivos como "funcionais". Temos dietas para cardíacos, para hipertensos, para gestantes, para idosos.
Cada vez menos a família se reúne em torno da mesa para compartilhar a refeição e se encontrar, trocar ideias, saber uns dos outros. Será falta de tempo? Talvez as pessoas tenham escolhido outras prioridades: numa pesquisa recente sobre as refeições, 69% dos entrevistados no Brasil relataram o hábito de assistir à TV enquanto se alimentam.
Uma criança de nove anos disse uma coisa interessante: para ela, o horário do recreio deveria ser maior porque tomar o lanche demora e, com isso, há menos tempo para brincar. Aí está: lanchar com os colegas não tem, para essa e muitas outras crianças, o caráter de prazer; parece ter uma ligação mais estreita com outras obrigações escolares.
Aliás, tenho observado a dificuldade que muitas crianças têm de falar com adultos e pares olhando para seu interlocutor. Elas falam e olham para o lado, para baixo e até para além da pessoa com quem conversam, mas o olho no olho parece ser desagradável, difícil para elas. Talvez seja porque estão acostumadas a olhar para a TV ou para o jogo enquanto conversam com os pais.
O horário das refeições é o melhor pretexto para reunir a família porque ocorre com regularidade e de modo informal.
E, nessa hora, os pais podem expressar e atualizar seus afetos pelos filhos de modo mais natural, além de construir o ambiente acolhedor que permite aos mais novos perceber com clareza que aquele é seu grupo de referência e de pertencimento.
Numa época em que os rituais estão em desuso, as refeições em família são um excelente momento para transmitir tradições familiares aos filhos: quais alimentos aquela família prefere e quais são os seus modos usuais de preparação, como se comporta à mesa, quais assuntos costuma abordar durante a refeição, o tom de voz usado, como os membros se tratam. Tudo isso é apreendido pelos mais novos, que podem encontrar seu modelo de identificação familiar e ter contato com o conhecimento construído pelas gerações anteriores da família.
O horário das refeições também pode servir para que contradições, diferenças e conflitos entre pais e filhos surjam de modo polido, para que os filhos saibam mais sobre a rotina profissional dos pais e para que estes ouçam sobre a vida escolar e social dos filhos sem cobranças. Por que estamos nos tornando comedores solitários? Por que aceitamos a ideia de que o alimento é mais importante em seu aspecto nutricional do que social? Por que a TV e o computador são nossas companhias preferidas no horário das refeições? Pelo jeito, temos muito a refletir sobre esse assunto.
Folha de S. Paulo, 16 de abril de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq1604200911.htm

domingo, 12 de abril de 2009

Juízos e juízes
CARLOS HEITOR CONY

O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô
CAVACOS DO oficio me obrigavam, volta e meia, a comparecer sob vara nas Varas Criminais do foro local. Processos os mais variados, nos quais às vezes funcionava como réu, às vezes como testemunha de defesa ou de acusação, funções que procurava desempenhar civicamente, intimado ou convidado pelos meritíssimos.Acontecia, inclusive, que num mesmo processo funcionava como testemunha arrolada pela defesa e pela acusação: um rapaz que se entupira de cocaína e matara, com um rabo-de-arraia, um oficial da Marinha, pai de cinco filhos, numa Sexta-Feira da Paixão. Entrevistara o criminoso ainda na delegacia, encontrei-o no chão, em crise de dependência dolorosa, uma baba incolor escorrendo das narinas, a língua maior do que a boca.Os guardas que o detinham não sabiam o que fazer. Descrevi o episódio numa reportagem, tanto o promotor como os advogados de defesa apelaram para o meu testemunho.Moral da história: a droga, para mim (e declarei isso na dupla função de testemunha acusatória e defensora), pode ser tudo, menos questão de polícia ou de justiça. Mas deixa pra lá.Dias depois, já na incômoda e habitual condição de réu, lá fui sentar meu cansado corpo naquele banco que o lugar-comum chama de banco dos réus, e é dos réus mesmo: duro, inglório, abaixo do nível da sala, para esmagar o criminoso moral e topograficamente.Um processo reles, desses que a profissão me arrastava comumente. Na audiência, era ouvido o testemunho arrolado pelo meu advogado, Evaristo de Moraes Filho. O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô ou padrinho, homem bom, simples, calejado no oficio de julgar humanos delitos, e que com a sabedoria da idade e da profissão, antes mesmo de terminar o processo, já dava a devida desimportância àquilo que os advogados costumam xingar de "fulcro penal".Na audiência, ele inquiriu a testemunha de forma cordial, podia não estar conforme a sacralidade da justiça, mas ficava muitíssimo bem no território humano -o único por sinal que eu respeito e considero sagrado. No meio da audiência, rompendo todos os rituais prescritos pelos códigos, entrou um rapaz trazendo cartões que logo identifiquei: eram da antiga loteria esportiva.Sua Excelência interrompeu o depoimento da testemunha para verificar se os furinhos correspondiam ao jogo que havia feito. Comentou em voz alta para a plateia, constituída por réus, testemunhas, promotor, advogados de defesa e de acusação, que já gastara os tubos na loteca e nunca passara dos nove pontos. Mas conhecia um sujeito que já descolara os 13 pontos diversas vezes. E saiu-se com essa verdade: "Não há justiça nesse mundo!".Voltou a interrogar a testemunha com inesperada severidade, até que entraram dois homens com grosso e empoeirado livro. A testemunha contava, com solenes palavras, na qualidade de diretor de um importante jornal do Rio, que convocara a seu gabinete um dos colunistas da casa, a fim de exigir explicações sobre uma nota que fora julgada infame pela autoridade criticada.O juiz interrompeu: "Não vamos perder tempo com esse fuxico de comadres, eu tenho uma escritura para examinar, minha filha casou-se com um cara que é uma toupeira, imaginem que ela comprou um terreno em Jacarepaguá e a besta do meu genro nem foi verificar a metragem exata, do lado direito tem 42 metros, mas na escritura está 24, tenho de ler toda essa papelada, a gente pensa que quando casa uma filha fica livre de problemas, pois o problemas aumentam, e aqui está a besta do pai para consertar as coisas".Mandou que os homens sentassem a seu lado, folheou o livro das escrituras, gastou mais de meia hora discutindo com os caras.Para relaxar, pediu que o contínuo servisse café a todos, menos para ele, que preferiu um chá. Recusou o açúcar, pingou na xícara as gotas do adoçante que tirou da gaveta. Não sem antes declarar que o açúcar era um veneno.Nessa altura, eu me considerei o mais bendito dos réus diante do mais humano dos juízes. Ainda que ele me condenasse, teria valido a pena.
Jornal Folha de S. Paulo, 03 de abril de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0304200933.htm

quarta-feira, 1 de abril de 2009

+ Marcelo Gleiser

Como sabemos?

Como sabemos que o mundo é do jeito que é? Fácil, diria uma pessoa pragmática: basta olhar e medir. Vemos a árvore, a cadeira, a mesa; ouvimos o vento, a música, as vozes das pessoas. Sentimos o calor e o frio na nossa pele. Uma vez que essa informação sensorial é integrada pelo nosso cérebro, construímos uma concepção do real que nos permite funcionar no mundo.
Sabemos aonde ir, o que comer, o que evitar tocar; sentimos o prazer de uma boa refeição, de um abraço carinhoso. Mas e quando vamos além dos nossos sentidos, usando instrumentos para estender a nossa concepção da realidade? Não vemos galáxias a olho nu (talvez Andrômeda, em noites muito especiais) e muito menos um átomo de carbono. Como sabemos que estão lá, que existem?
Quando Galileu mostrou seu telescópio para os senadores de Veneza, muitos se recusaram a aceitar que o que viam era real. Mais recentemente, no final do século 19, o grande físico e filósofo austríaco Ernst Mach se recusava a aceitar a existência dos átomos pois estes, segundo ele, nunca poderiam ser visualizados. Mach e os senadores estavam errados.
O que se vê através dos telescópios é perfeitamente real. Captamos os fótons -as partículas de luz- emitidos (ou refletidos, no caso de planetas e luas) pelo corpo celeste. Se a fonte não emite nas faixas visíveis do espectro, ou está tão longe que não podemos captar fótons entre o vermelho e o violeta, captamos ondas de rádio ou micro-ondas, radiação eletromagnética que nossos olhos não enxergam, mas que nem por isso é menos real.
Quando elétrons pulam de órbita nos átomos, também emitem (ou absorvem) fótons, que podem ser detectados por instrumentos ou, no caso de serem visíveis, pelos nossos olhos. Os instrumentos usados no estudo dos fenômenos naturais são uma extensão dos nossos sentidos. Um dos feitos mais espetaculares da ciência é justamente essa ampliação da realidade, o ver além do visível.
A situação se complica quando a complexidade do fenômeno nos força a filtrar dados, selecionando apenas uma parte do que ocorre. Nossos cérebros fazem isso constantemente, o que chamamos de "foco"; caso contrário, seríamos inundados a tal ponto por sons e imagens que não conseguiríamos fazer nada. Quando olhamos para uma estrela a olho nu ou com um telescópio óptico, vemos apenas parte dela, o que ela emite no visível. Uma visão completa da estrela incorporaria suas emissões no infravermelho, no ultravioleta, no raio X etc. A consequência desse fato é simples, mas profunda: nossa construção da realidade, por ser sempre filtrada, é incompleta. Sabemos apenas aquilo que medimos.
No caso das partículas elementares, o problema é ainda mais grave. O gigantesco acelerador LHC, por exemplo, que deve entrar em funcionamento dentro de alguns meses na Suíça, criará em torno de 600 milhões de colisões entre partículas por segundo. Essas colisões geram 700 megabytes de dados por segundo, mais de 10 petabytes por ano. Um petabyte equivale a mil trilhões de bytes (1015), 1 milhão de discos rígidos com 1 gigabyte cada.
Para tornar a pesquisa viável, os grupos de cientistas filtram os dados, selecionando eventos designados "interessantes". Essa seleção, por sua vez, é baseada em teorias atuais que especulam sobre o que existe além do que já conhecemos. Apesar de as teorias serem sólidas, elas só serão confirmadas pelos experimentos. Existe o risco de que fenômenos inesperados, não-previstos pelas teorias, sejam eliminados pela filtragem dos dados.
Nesse caso, nossas próprias teorias limitam o que sabemos sobre o mundo - uma conclusão um tanto paradoxal.
Folha de S. Paulo, 22 de março de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2203200905.htm