quinta-feira, 18 de junho de 2009

Autoridade e medo
Rosely Sayão

Uma notícia publicada em jornais chamou a atenção de uma leitora. O Tribunal de Justiça do Rio decidiu que uma menina receberá aproximadamente R$ 7.000 de indenização por ter sido retirada da sala de aula em dia de prova. O motivo?
Estava sem uniforme. O que a leitora questiona é se a Justiça não está desqualificando a autoridade da escola e, dessa maneira, acentuando ainda mais as já existentes atitudes de desrespeito ao espaço escolar.
Ela tem uma filha que cursa a 6ª série em uma escola em que o diretor vai implantar o uso do uniforme. O problema é que os alunos não aceitam a ideia e o diretor aguarda a adesão deles à proposta, já que não quer fazer uma imposição. E nossa leitora reclama porque, para ela, algumas coisas devem ser, simplesmente, acatadas.
Para ela, o uso do uniforme é um desses casos, já que os alunos realizam um verdadeiro desfile de moda na escola por conta do consumismo. A reflexão de nossa leitora é a respeito do enfraquecimento da autoridade da família e da escola.
Em primeiro lugar, vamos lembrar que muitas atitudes de transgressão que os alunos cometem na escola são provocadas pela própria instituição. No caso da aluna que receberá a indenização, por exemplo, a explicação dada para não usar o uniforme é que não havia um disponível no tamanho dela.
No caso da escola que a filha de nossa leitora frequenta, apesar de o uso ser obrigatório segundo o caderno de normas e procedimentos distribuído no início do ano, a própria escola abriu o precedente, já que não havia uniforme para todos. Depois de um tempo indo às aulas com roupas casuais, os alunos não aceitam a mudança.
Pode haver ou não uma boa justificativa para o uso do uniforme. Uma delas é a citada pela leitora: evitar que os alunos usem e abusem das roupas para excluir colegas, zombar deles, fazer desfiles de grifes. Mas não basta decretar o uso e esperar que todos respeitem a norma. É preciso trabalhar para que ela seja cumprida.
Acontece que as escolas guardam a ideia obsoleta de que a punição é a melhor medida em educação. Quando alunos comparecem sem uniforme, são impedidos de frequentar as aulas. Mas, se o objetivo da escola é que o aluno aprenda e se, para tanto, precisa estar nas aulas, tal medida é equivocada. Por que não deixar algumas peças na secretaria e emprestá-las aos que vão sem uniforme? Essa e outras medidas podem ter caráter educativo.
Muitas escolas evitam, também, desagradar a seus alunos.
Ora, mas educar não implica, necessariamente, desagradar?
A criança quer brincar, mas precisa estudar; quer se distrair, mas precisa aprender a se concentrar; quer atenção exclusiva, mas precisa conviver e compartilhar; quer dormir, mas precisa acordar etc.
Inicialmente, a criança permite ser educada por medo de deixar de ser amada pelos pais.
Mas, pelo jeito, hoje o medo é dos adultos: os pais temem perder o amor dos filhos, as escolas temem perder seus alunos...
Com medo, não dá mesmo para exercer a autoridade e, sem ela, não dá para educar.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq1106200908.htm

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Prisão perpétua
RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO - Na madrugada do dia 7, em Curitiba, o deputado estadual Francisco Carli Filho, 26, literalmente decolou com seu carro, um Passat preto, e passou como uma navalha sobre um Honda Fit prata, matando os dois ocupantes deste, de 20 e 26 anos. O choque atirou os carros na outra pista. Um dos rapazes foi decapitado.Uma testemunha declarou que o Passat vinha em alta velocidade, a ponto de levantar voo ao atravessar um desnível. Os bombeiros encontraram o velocímetro congelado em 190 km/h. Nove deles disseram que, ao ser socorrido, o deputado estava "visivelmente alcoolizado". Apesar disso, a polícia de Curitiba levou uma semana para pedir amostras de sangue do deputado.O deputado tinha 30 multas de trânsito, das quais 23 por excesso de velocidade, e 130 pontos na carteira -o máximo permitido é 20 pontos por ano. Estava com a habilitação suspensa desde julho de 2007, mas continuava dirigindo.Nos primeiros dias, o noticiário privilegiou a informação de que o deputado saíra gravemente ferido do acidente e só se referia de passagem à morte dos dois rapazes. Seus assessores levantaram "suspeitas" de que tivesse havido um pega entre os carros ou que a culpa pelo acidente pudesse ser do Honda -tramoia desmentida pela testemunha. O deputado pertence a uma influente família de políticos paranaenses, com poderes sobre alguns meios de comunicação.Nos EUA, a punição para esse tipo de acidente, mesmo sem tantos agravantes, pode levar à prisão perpétua. No Brasil, o deputado, se se recuperar do choque, logo estará de novo ao volante e à sua cadeira na Assembleia local. Condenados à prisão perpétua estão os pais dos rapazes mortos -a mãe de um deles, ao ser chamada após a tragédia, recebeu a cabeça de seu filho para reconhecer.
Folha de S. Paulo, 16 de maio de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1605200905.htm

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A condição humana
DRAUZIO VARELLA

COMEÇAM A ser identificados os genes que codificam as características exclusivas da espécie humana. Os chimpanzés e nós descendemos de um mesmo ancestral que viveu até 6 milhões de anos atrás, época em que divergirmos deles, geneticamente. Somos tão próximos, que seríamos considerados seres da mesma espécie, caso adotássemos para os primatas os mesmos critérios usados para classificar os pássaros, por exemplo.
O fato de compartilharmos cerca de 99% dos genes não é de surpreender, dadas a existência do ancestral comum e as semelhanças de aparência física, constituição bioquímica e até de relacionamento social. O que intriga é como 1% de diferença basta para explicar porque eles dormem em árvores, enquanto nós construímos cidades.
Assim que o genoma do chimpanzé foi sequenciado, vários grupos se dedicaram a comparar os 3 bilhões de pares de bases (representadas pelas letras do alfabeto A, G, C e T) contidas no nosso DNA e no deles.
A tarefa tem sido levada adiante por meio de programas de computador que "escaneiam" ambos os genomas à procura dos trechos em que as bases A, G, C e T estejam ordenadas de forma diversa.
A conclusão é que as diferenças se acham confinadas em trechos de DNA formados por apenas 15 milhões de bases.
Nesses estudos começam a emergir alguns genes, reunidos em uma revisão escrita por Katherine Pollard, da Universidade da Califórnia, na revista "Scientific American".
O primeiro deles foi HAR1, gene ativo em alguns neurônios cerebrais.
Esse gene é encontrado em todos os vertebrados, mas em galinhas e chimpanzés (espécies que divergiram há 300 milhões de anos) as diferenças são mínimas: cerca de 2%. Já, entre nós e os chimpanzés (espécies que divergiram há 6 milhões de anos) elas ultrapassam 10%.
HAR1 é um gene ativo num tipo de neurônio essencial para o desenvolvimento do córtex cerebral, a camada mais externa do cérebro, cheia de reentrâncias e saliências, nas quais se acham entranhadas as atividades cognitivas que nos permitem compor sinfonias.
Quando HAR1 sofre mutações podem surgir doenças congênitas eventualmente fatais, como a lisencefalia, enfermidade na qual a parte externa do cérebro fica lisa, sem as reentrâncias e saliências características do córtex humano.
Outro gene que mostrou diferenças significativas com o similar em chimpanzés foi FOXP2, envolvido numa das mais importantes características humanas: o domínio da linguagem. Quando ocorrem mutações em FOXP2 as crianças perdem a capacidade de executar determinados movimentos faciais necessários para a articulação da palavra.
Mas, o que distingue a fala humana das vocalizações empregadas na comunicação entre outros animais, não são simplesmente as características do aparelho fonador, mas o tamanho do cérebro. Nos últimos 6 milhões de anos, o volume de nosso cérebro mais do que triplicou.
Um dos genes envolvidos nesse processo é ASPM, que, quando defeituoso, leva à condição congênita conhecida como microcefalia, na qual o cérebro chega a ficar reduzido a 70% de seu volume.
Nem todas as características unicamente humanas se acham restritas ao cérebro, no entanto.
A conquista do fogo há 1 milhão de anos e a da agricultura há 10 mil anos criaram oportunidades de acesso farto aos carboidratos. As calorias disponíveis nesses alimentos só puderam ser aproveitadas porque no genoma humano surgiram múltiplas cópias do gene AMY1, responsável pela produção de amilase na saliva, enzima essencial para a digestão dos açúcares.
Outro exemplo é o gene LCT, responsável pela produção da lactase, enzima encarregada da digestão da lactose, o açúcar do leite que os mamíferos digerem bem apenas na infância. Mutações no genoma humano, ocorridas há 9 mil anos, produziram versões de LCT que tornaram possível a digestão de leite também na vida adulta, ampliando as possibilidades de sobrevivência em tempos de penúria.
Descobrir a estrutura e as funções desses e de outros genes com mutações exclusivas da espécie humana, ocorridas ao acaso e submetidas ao crivo da seleção natural através da competição pela sobrevivência, permitirá conhecer a organização das moléculas que deram origem à condição humana.
Não é mais instigante do que aceitar a ideia de que o homem seria fruto de um sopro divino e a mulher criada a partir de sua costela?
Folha de São Paulo, sábado, 09 de maio de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0905200931.htm

terça-feira, 21 de abril de 2009

Refeição em família
ROSELY SAYÃO

Os meios de comunicação, devidamente apoiados por informações científicas, dizem que alimentação é uma questão de saúde. Programas de TV ensinam a comer bem para manter o corpo magro e saudável, livros oferecem cardápios de populações com alto índice de longevidade, alimentos ganham adjetivos como "funcionais". Temos dietas para cardíacos, para hipertensos, para gestantes, para idosos.
Cada vez menos a família se reúne em torno da mesa para compartilhar a refeição e se encontrar, trocar ideias, saber uns dos outros. Será falta de tempo? Talvez as pessoas tenham escolhido outras prioridades: numa pesquisa recente sobre as refeições, 69% dos entrevistados no Brasil relataram o hábito de assistir à TV enquanto se alimentam.
Uma criança de nove anos disse uma coisa interessante: para ela, o horário do recreio deveria ser maior porque tomar o lanche demora e, com isso, há menos tempo para brincar. Aí está: lanchar com os colegas não tem, para essa e muitas outras crianças, o caráter de prazer; parece ter uma ligação mais estreita com outras obrigações escolares.
Aliás, tenho observado a dificuldade que muitas crianças têm de falar com adultos e pares olhando para seu interlocutor. Elas falam e olham para o lado, para baixo e até para além da pessoa com quem conversam, mas o olho no olho parece ser desagradável, difícil para elas. Talvez seja porque estão acostumadas a olhar para a TV ou para o jogo enquanto conversam com os pais.
O horário das refeições é o melhor pretexto para reunir a família porque ocorre com regularidade e de modo informal.
E, nessa hora, os pais podem expressar e atualizar seus afetos pelos filhos de modo mais natural, além de construir o ambiente acolhedor que permite aos mais novos perceber com clareza que aquele é seu grupo de referência e de pertencimento.
Numa época em que os rituais estão em desuso, as refeições em família são um excelente momento para transmitir tradições familiares aos filhos: quais alimentos aquela família prefere e quais são os seus modos usuais de preparação, como se comporta à mesa, quais assuntos costuma abordar durante a refeição, o tom de voz usado, como os membros se tratam. Tudo isso é apreendido pelos mais novos, que podem encontrar seu modelo de identificação familiar e ter contato com o conhecimento construído pelas gerações anteriores da família.
O horário das refeições também pode servir para que contradições, diferenças e conflitos entre pais e filhos surjam de modo polido, para que os filhos saibam mais sobre a rotina profissional dos pais e para que estes ouçam sobre a vida escolar e social dos filhos sem cobranças. Por que estamos nos tornando comedores solitários? Por que aceitamos a ideia de que o alimento é mais importante em seu aspecto nutricional do que social? Por que a TV e o computador são nossas companhias preferidas no horário das refeições? Pelo jeito, temos muito a refletir sobre esse assunto.
Folha de S. Paulo, 16 de abril de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq1604200911.htm

domingo, 12 de abril de 2009

Juízos e juízes
CARLOS HEITOR CONY

O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô
CAVACOS DO oficio me obrigavam, volta e meia, a comparecer sob vara nas Varas Criminais do foro local. Processos os mais variados, nos quais às vezes funcionava como réu, às vezes como testemunha de defesa ou de acusação, funções que procurava desempenhar civicamente, intimado ou convidado pelos meritíssimos.Acontecia, inclusive, que num mesmo processo funcionava como testemunha arrolada pela defesa e pela acusação: um rapaz que se entupira de cocaína e matara, com um rabo-de-arraia, um oficial da Marinha, pai de cinco filhos, numa Sexta-Feira da Paixão. Entrevistara o criminoso ainda na delegacia, encontrei-o no chão, em crise de dependência dolorosa, uma baba incolor escorrendo das narinas, a língua maior do que a boca.Os guardas que o detinham não sabiam o que fazer. Descrevi o episódio numa reportagem, tanto o promotor como os advogados de defesa apelaram para o meu testemunho.Moral da história: a droga, para mim (e declarei isso na dupla função de testemunha acusatória e defensora), pode ser tudo, menos questão de polícia ou de justiça. Mas deixa pra lá.Dias depois, já na incômoda e habitual condição de réu, lá fui sentar meu cansado corpo naquele banco que o lugar-comum chama de banco dos réus, e é dos réus mesmo: duro, inglório, abaixo do nível da sala, para esmagar o criminoso moral e topograficamente.Um processo reles, desses que a profissão me arrastava comumente. Na audiência, era ouvido o testemunho arrolado pelo meu advogado, Evaristo de Moraes Filho. O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô ou padrinho, homem bom, simples, calejado no oficio de julgar humanos delitos, e que com a sabedoria da idade e da profissão, antes mesmo de terminar o processo, já dava a devida desimportância àquilo que os advogados costumam xingar de "fulcro penal".Na audiência, ele inquiriu a testemunha de forma cordial, podia não estar conforme a sacralidade da justiça, mas ficava muitíssimo bem no território humano -o único por sinal que eu respeito e considero sagrado. No meio da audiência, rompendo todos os rituais prescritos pelos códigos, entrou um rapaz trazendo cartões que logo identifiquei: eram da antiga loteria esportiva.Sua Excelência interrompeu o depoimento da testemunha para verificar se os furinhos correspondiam ao jogo que havia feito. Comentou em voz alta para a plateia, constituída por réus, testemunhas, promotor, advogados de defesa e de acusação, que já gastara os tubos na loteca e nunca passara dos nove pontos. Mas conhecia um sujeito que já descolara os 13 pontos diversas vezes. E saiu-se com essa verdade: "Não há justiça nesse mundo!".Voltou a interrogar a testemunha com inesperada severidade, até que entraram dois homens com grosso e empoeirado livro. A testemunha contava, com solenes palavras, na qualidade de diretor de um importante jornal do Rio, que convocara a seu gabinete um dos colunistas da casa, a fim de exigir explicações sobre uma nota que fora julgada infame pela autoridade criticada.O juiz interrompeu: "Não vamos perder tempo com esse fuxico de comadres, eu tenho uma escritura para examinar, minha filha casou-se com um cara que é uma toupeira, imaginem que ela comprou um terreno em Jacarepaguá e a besta do meu genro nem foi verificar a metragem exata, do lado direito tem 42 metros, mas na escritura está 24, tenho de ler toda essa papelada, a gente pensa que quando casa uma filha fica livre de problemas, pois o problemas aumentam, e aqui está a besta do pai para consertar as coisas".Mandou que os homens sentassem a seu lado, folheou o livro das escrituras, gastou mais de meia hora discutindo com os caras.Para relaxar, pediu que o contínuo servisse café a todos, menos para ele, que preferiu um chá. Recusou o açúcar, pingou na xícara as gotas do adoçante que tirou da gaveta. Não sem antes declarar que o açúcar era um veneno.Nessa altura, eu me considerei o mais bendito dos réus diante do mais humano dos juízes. Ainda que ele me condenasse, teria valido a pena.
Jornal Folha de S. Paulo, 03 de abril de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0304200933.htm

quarta-feira, 1 de abril de 2009

+ Marcelo Gleiser

Como sabemos?

Como sabemos que o mundo é do jeito que é? Fácil, diria uma pessoa pragmática: basta olhar e medir. Vemos a árvore, a cadeira, a mesa; ouvimos o vento, a música, as vozes das pessoas. Sentimos o calor e o frio na nossa pele. Uma vez que essa informação sensorial é integrada pelo nosso cérebro, construímos uma concepção do real que nos permite funcionar no mundo.
Sabemos aonde ir, o que comer, o que evitar tocar; sentimos o prazer de uma boa refeição, de um abraço carinhoso. Mas e quando vamos além dos nossos sentidos, usando instrumentos para estender a nossa concepção da realidade? Não vemos galáxias a olho nu (talvez Andrômeda, em noites muito especiais) e muito menos um átomo de carbono. Como sabemos que estão lá, que existem?
Quando Galileu mostrou seu telescópio para os senadores de Veneza, muitos se recusaram a aceitar que o que viam era real. Mais recentemente, no final do século 19, o grande físico e filósofo austríaco Ernst Mach se recusava a aceitar a existência dos átomos pois estes, segundo ele, nunca poderiam ser visualizados. Mach e os senadores estavam errados.
O que se vê através dos telescópios é perfeitamente real. Captamos os fótons -as partículas de luz- emitidos (ou refletidos, no caso de planetas e luas) pelo corpo celeste. Se a fonte não emite nas faixas visíveis do espectro, ou está tão longe que não podemos captar fótons entre o vermelho e o violeta, captamos ondas de rádio ou micro-ondas, radiação eletromagnética que nossos olhos não enxergam, mas que nem por isso é menos real.
Quando elétrons pulam de órbita nos átomos, também emitem (ou absorvem) fótons, que podem ser detectados por instrumentos ou, no caso de serem visíveis, pelos nossos olhos. Os instrumentos usados no estudo dos fenômenos naturais são uma extensão dos nossos sentidos. Um dos feitos mais espetaculares da ciência é justamente essa ampliação da realidade, o ver além do visível.
A situação se complica quando a complexidade do fenômeno nos força a filtrar dados, selecionando apenas uma parte do que ocorre. Nossos cérebros fazem isso constantemente, o que chamamos de "foco"; caso contrário, seríamos inundados a tal ponto por sons e imagens que não conseguiríamos fazer nada. Quando olhamos para uma estrela a olho nu ou com um telescópio óptico, vemos apenas parte dela, o que ela emite no visível. Uma visão completa da estrela incorporaria suas emissões no infravermelho, no ultravioleta, no raio X etc. A consequência desse fato é simples, mas profunda: nossa construção da realidade, por ser sempre filtrada, é incompleta. Sabemos apenas aquilo que medimos.
No caso das partículas elementares, o problema é ainda mais grave. O gigantesco acelerador LHC, por exemplo, que deve entrar em funcionamento dentro de alguns meses na Suíça, criará em torno de 600 milhões de colisões entre partículas por segundo. Essas colisões geram 700 megabytes de dados por segundo, mais de 10 petabytes por ano. Um petabyte equivale a mil trilhões de bytes (1015), 1 milhão de discos rígidos com 1 gigabyte cada.
Para tornar a pesquisa viável, os grupos de cientistas filtram os dados, selecionando eventos designados "interessantes". Essa seleção, por sua vez, é baseada em teorias atuais que especulam sobre o que existe além do que já conhecemos. Apesar de as teorias serem sólidas, elas só serão confirmadas pelos experimentos. Existe o risco de que fenômenos inesperados, não-previstos pelas teorias, sejam eliminados pela filtragem dos dados.
Nesse caso, nossas próprias teorias limitam o que sabemos sobre o mundo - uma conclusão um tanto paradoxal.
Folha de S. Paulo, 22 de março de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2203200905.htm

quarta-feira, 25 de março de 2009

Data marcada para morrer
RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO - Um querido amigo morreu na semana passada, depois de 15 dias no hospital. Nesse período, que passou quase todo inconsciente, seu fígado, coração, pressão e pulmões quiseram várias vezes abandoná-lo. Teve também alucinações. Os remédios que lhe aplicaram paralisaram-lhe os rins. Se não fosse tão forte, teria ido logo embora. Até que nem ele aguentou. Em certo momento, os contadores dos mecanismos que tentavam mantê-lo vivo foram zerando, um por um. Tinha 50 anos.
A causa da morte, no relatório médico, foi choque séptico-pulmonar. Mas, por trás desse diagnóstico frio e neutro, havia 30 anos de consumo pesado de álcool e drogas, dos quais os primeiros 20 foram uma sucessão de festas, risos, frases rápidas, sucesso profissional e grande apetite pela vida. A dependência, no entanto, não deixa de cobrar a conta. E o pagamento é a vida.
Seu irmão, quase da mesma idade e com o mesmo quadro, terá destino igual, com a desvantagem de que sua vida nunca foi aquela euforia. A namorada de meu amigo, alguns anos mais nova, também não deve durar muito tempo. Como não precisa trabalhar para viver, pode dedicar-se full time às substâncias que, a esta altura, já nem lhe dão prazer -apenas impedem que passe mal.
Outra amiga sua, exatamente de sua geração, e o filho dela, de pouco mais de 20 anos, gente de classe média e berço fino, estão incrivelmente na cadeia, depois de um desastrado assalto a um taxista, de quem tentaram levar a féria para comprar cocaína. O ex-marido desta mulher, por sinal, há muito já viu sua carreira profissional encerrada pelo ácido. E por aí vai.
Há hoje uma grande incidência de pessoas na faixa dos 50 com data marcada para morrer. São os que acreditaram que a década de 70 iria durar para sempre. Os que viveram para chegar até aqui, claro.
Folha de S. Paulo, 25 de março de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2503200905.htm