quinta-feira, 18 de junho de 2009

Autoridade e medo
Rosely Sayão

Uma notícia publicada em jornais chamou a atenção de uma leitora. O Tribunal de Justiça do Rio decidiu que uma menina receberá aproximadamente R$ 7.000 de indenização por ter sido retirada da sala de aula em dia de prova. O motivo?
Estava sem uniforme. O que a leitora questiona é se a Justiça não está desqualificando a autoridade da escola e, dessa maneira, acentuando ainda mais as já existentes atitudes de desrespeito ao espaço escolar.
Ela tem uma filha que cursa a 6ª série em uma escola em que o diretor vai implantar o uso do uniforme. O problema é que os alunos não aceitam a ideia e o diretor aguarda a adesão deles à proposta, já que não quer fazer uma imposição. E nossa leitora reclama porque, para ela, algumas coisas devem ser, simplesmente, acatadas.
Para ela, o uso do uniforme é um desses casos, já que os alunos realizam um verdadeiro desfile de moda na escola por conta do consumismo. A reflexão de nossa leitora é a respeito do enfraquecimento da autoridade da família e da escola.
Em primeiro lugar, vamos lembrar que muitas atitudes de transgressão que os alunos cometem na escola são provocadas pela própria instituição. No caso da aluna que receberá a indenização, por exemplo, a explicação dada para não usar o uniforme é que não havia um disponível no tamanho dela.
No caso da escola que a filha de nossa leitora frequenta, apesar de o uso ser obrigatório segundo o caderno de normas e procedimentos distribuído no início do ano, a própria escola abriu o precedente, já que não havia uniforme para todos. Depois de um tempo indo às aulas com roupas casuais, os alunos não aceitam a mudança.
Pode haver ou não uma boa justificativa para o uso do uniforme. Uma delas é a citada pela leitora: evitar que os alunos usem e abusem das roupas para excluir colegas, zombar deles, fazer desfiles de grifes. Mas não basta decretar o uso e esperar que todos respeitem a norma. É preciso trabalhar para que ela seja cumprida.
Acontece que as escolas guardam a ideia obsoleta de que a punição é a melhor medida em educação. Quando alunos comparecem sem uniforme, são impedidos de frequentar as aulas. Mas, se o objetivo da escola é que o aluno aprenda e se, para tanto, precisa estar nas aulas, tal medida é equivocada. Por que não deixar algumas peças na secretaria e emprestá-las aos que vão sem uniforme? Essa e outras medidas podem ter caráter educativo.
Muitas escolas evitam, também, desagradar a seus alunos.
Ora, mas educar não implica, necessariamente, desagradar?
A criança quer brincar, mas precisa estudar; quer se distrair, mas precisa aprender a se concentrar; quer atenção exclusiva, mas precisa conviver e compartilhar; quer dormir, mas precisa acordar etc.
Inicialmente, a criança permite ser educada por medo de deixar de ser amada pelos pais.
Mas, pelo jeito, hoje o medo é dos adultos: os pais temem perder o amor dos filhos, as escolas temem perder seus alunos...
Com medo, não dá mesmo para exercer a autoridade e, sem ela, não dá para educar.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq1106200908.htm

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Prisão perpétua
RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO - Na madrugada do dia 7, em Curitiba, o deputado estadual Francisco Carli Filho, 26, literalmente decolou com seu carro, um Passat preto, e passou como uma navalha sobre um Honda Fit prata, matando os dois ocupantes deste, de 20 e 26 anos. O choque atirou os carros na outra pista. Um dos rapazes foi decapitado.Uma testemunha declarou que o Passat vinha em alta velocidade, a ponto de levantar voo ao atravessar um desnível. Os bombeiros encontraram o velocímetro congelado em 190 km/h. Nove deles disseram que, ao ser socorrido, o deputado estava "visivelmente alcoolizado". Apesar disso, a polícia de Curitiba levou uma semana para pedir amostras de sangue do deputado.O deputado tinha 30 multas de trânsito, das quais 23 por excesso de velocidade, e 130 pontos na carteira -o máximo permitido é 20 pontos por ano. Estava com a habilitação suspensa desde julho de 2007, mas continuava dirigindo.Nos primeiros dias, o noticiário privilegiou a informação de que o deputado saíra gravemente ferido do acidente e só se referia de passagem à morte dos dois rapazes. Seus assessores levantaram "suspeitas" de que tivesse havido um pega entre os carros ou que a culpa pelo acidente pudesse ser do Honda -tramoia desmentida pela testemunha. O deputado pertence a uma influente família de políticos paranaenses, com poderes sobre alguns meios de comunicação.Nos EUA, a punição para esse tipo de acidente, mesmo sem tantos agravantes, pode levar à prisão perpétua. No Brasil, o deputado, se se recuperar do choque, logo estará de novo ao volante e à sua cadeira na Assembleia local. Condenados à prisão perpétua estão os pais dos rapazes mortos -a mãe de um deles, ao ser chamada após a tragédia, recebeu a cabeça de seu filho para reconhecer.
Folha de S. Paulo, 16 de maio de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1605200905.htm

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A condição humana
DRAUZIO VARELLA

COMEÇAM A ser identificados os genes que codificam as características exclusivas da espécie humana. Os chimpanzés e nós descendemos de um mesmo ancestral que viveu até 6 milhões de anos atrás, época em que divergirmos deles, geneticamente. Somos tão próximos, que seríamos considerados seres da mesma espécie, caso adotássemos para os primatas os mesmos critérios usados para classificar os pássaros, por exemplo.
O fato de compartilharmos cerca de 99% dos genes não é de surpreender, dadas a existência do ancestral comum e as semelhanças de aparência física, constituição bioquímica e até de relacionamento social. O que intriga é como 1% de diferença basta para explicar porque eles dormem em árvores, enquanto nós construímos cidades.
Assim que o genoma do chimpanzé foi sequenciado, vários grupos se dedicaram a comparar os 3 bilhões de pares de bases (representadas pelas letras do alfabeto A, G, C e T) contidas no nosso DNA e no deles.
A tarefa tem sido levada adiante por meio de programas de computador que "escaneiam" ambos os genomas à procura dos trechos em que as bases A, G, C e T estejam ordenadas de forma diversa.
A conclusão é que as diferenças se acham confinadas em trechos de DNA formados por apenas 15 milhões de bases.
Nesses estudos começam a emergir alguns genes, reunidos em uma revisão escrita por Katherine Pollard, da Universidade da Califórnia, na revista "Scientific American".
O primeiro deles foi HAR1, gene ativo em alguns neurônios cerebrais.
Esse gene é encontrado em todos os vertebrados, mas em galinhas e chimpanzés (espécies que divergiram há 300 milhões de anos) as diferenças são mínimas: cerca de 2%. Já, entre nós e os chimpanzés (espécies que divergiram há 6 milhões de anos) elas ultrapassam 10%.
HAR1 é um gene ativo num tipo de neurônio essencial para o desenvolvimento do córtex cerebral, a camada mais externa do cérebro, cheia de reentrâncias e saliências, nas quais se acham entranhadas as atividades cognitivas que nos permitem compor sinfonias.
Quando HAR1 sofre mutações podem surgir doenças congênitas eventualmente fatais, como a lisencefalia, enfermidade na qual a parte externa do cérebro fica lisa, sem as reentrâncias e saliências características do córtex humano.
Outro gene que mostrou diferenças significativas com o similar em chimpanzés foi FOXP2, envolvido numa das mais importantes características humanas: o domínio da linguagem. Quando ocorrem mutações em FOXP2 as crianças perdem a capacidade de executar determinados movimentos faciais necessários para a articulação da palavra.
Mas, o que distingue a fala humana das vocalizações empregadas na comunicação entre outros animais, não são simplesmente as características do aparelho fonador, mas o tamanho do cérebro. Nos últimos 6 milhões de anos, o volume de nosso cérebro mais do que triplicou.
Um dos genes envolvidos nesse processo é ASPM, que, quando defeituoso, leva à condição congênita conhecida como microcefalia, na qual o cérebro chega a ficar reduzido a 70% de seu volume.
Nem todas as características unicamente humanas se acham restritas ao cérebro, no entanto.
A conquista do fogo há 1 milhão de anos e a da agricultura há 10 mil anos criaram oportunidades de acesso farto aos carboidratos. As calorias disponíveis nesses alimentos só puderam ser aproveitadas porque no genoma humano surgiram múltiplas cópias do gene AMY1, responsável pela produção de amilase na saliva, enzima essencial para a digestão dos açúcares.
Outro exemplo é o gene LCT, responsável pela produção da lactase, enzima encarregada da digestão da lactose, o açúcar do leite que os mamíferos digerem bem apenas na infância. Mutações no genoma humano, ocorridas há 9 mil anos, produziram versões de LCT que tornaram possível a digestão de leite também na vida adulta, ampliando as possibilidades de sobrevivência em tempos de penúria.
Descobrir a estrutura e as funções desses e de outros genes com mutações exclusivas da espécie humana, ocorridas ao acaso e submetidas ao crivo da seleção natural através da competição pela sobrevivência, permitirá conhecer a organização das moléculas que deram origem à condição humana.
Não é mais instigante do que aceitar a ideia de que o homem seria fruto de um sopro divino e a mulher criada a partir de sua costela?
Folha de São Paulo, sábado, 09 de maio de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0905200931.htm

terça-feira, 21 de abril de 2009

Refeição em família
ROSELY SAYÃO

Os meios de comunicação, devidamente apoiados por informações científicas, dizem que alimentação é uma questão de saúde. Programas de TV ensinam a comer bem para manter o corpo magro e saudável, livros oferecem cardápios de populações com alto índice de longevidade, alimentos ganham adjetivos como "funcionais". Temos dietas para cardíacos, para hipertensos, para gestantes, para idosos.
Cada vez menos a família se reúne em torno da mesa para compartilhar a refeição e se encontrar, trocar ideias, saber uns dos outros. Será falta de tempo? Talvez as pessoas tenham escolhido outras prioridades: numa pesquisa recente sobre as refeições, 69% dos entrevistados no Brasil relataram o hábito de assistir à TV enquanto se alimentam.
Uma criança de nove anos disse uma coisa interessante: para ela, o horário do recreio deveria ser maior porque tomar o lanche demora e, com isso, há menos tempo para brincar. Aí está: lanchar com os colegas não tem, para essa e muitas outras crianças, o caráter de prazer; parece ter uma ligação mais estreita com outras obrigações escolares.
Aliás, tenho observado a dificuldade que muitas crianças têm de falar com adultos e pares olhando para seu interlocutor. Elas falam e olham para o lado, para baixo e até para além da pessoa com quem conversam, mas o olho no olho parece ser desagradável, difícil para elas. Talvez seja porque estão acostumadas a olhar para a TV ou para o jogo enquanto conversam com os pais.
O horário das refeições é o melhor pretexto para reunir a família porque ocorre com regularidade e de modo informal.
E, nessa hora, os pais podem expressar e atualizar seus afetos pelos filhos de modo mais natural, além de construir o ambiente acolhedor que permite aos mais novos perceber com clareza que aquele é seu grupo de referência e de pertencimento.
Numa época em que os rituais estão em desuso, as refeições em família são um excelente momento para transmitir tradições familiares aos filhos: quais alimentos aquela família prefere e quais são os seus modos usuais de preparação, como se comporta à mesa, quais assuntos costuma abordar durante a refeição, o tom de voz usado, como os membros se tratam. Tudo isso é apreendido pelos mais novos, que podem encontrar seu modelo de identificação familiar e ter contato com o conhecimento construído pelas gerações anteriores da família.
O horário das refeições também pode servir para que contradições, diferenças e conflitos entre pais e filhos surjam de modo polido, para que os filhos saibam mais sobre a rotina profissional dos pais e para que estes ouçam sobre a vida escolar e social dos filhos sem cobranças. Por que estamos nos tornando comedores solitários? Por que aceitamos a ideia de que o alimento é mais importante em seu aspecto nutricional do que social? Por que a TV e o computador são nossas companhias preferidas no horário das refeições? Pelo jeito, temos muito a refletir sobre esse assunto.
Folha de S. Paulo, 16 de abril de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq1604200911.htm

domingo, 12 de abril de 2009

Juízos e juízes
CARLOS HEITOR CONY

O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô
CAVACOS DO oficio me obrigavam, volta e meia, a comparecer sob vara nas Varas Criminais do foro local. Processos os mais variados, nos quais às vezes funcionava como réu, às vezes como testemunha de defesa ou de acusação, funções que procurava desempenhar civicamente, intimado ou convidado pelos meritíssimos.Acontecia, inclusive, que num mesmo processo funcionava como testemunha arrolada pela defesa e pela acusação: um rapaz que se entupira de cocaína e matara, com um rabo-de-arraia, um oficial da Marinha, pai de cinco filhos, numa Sexta-Feira da Paixão. Entrevistara o criminoso ainda na delegacia, encontrei-o no chão, em crise de dependência dolorosa, uma baba incolor escorrendo das narinas, a língua maior do que a boca.Os guardas que o detinham não sabiam o que fazer. Descrevi o episódio numa reportagem, tanto o promotor como os advogados de defesa apelaram para o meu testemunho.Moral da história: a droga, para mim (e declarei isso na dupla função de testemunha acusatória e defensora), pode ser tudo, menos questão de polícia ou de justiça. Mas deixa pra lá.Dias depois, já na incômoda e habitual condição de réu, lá fui sentar meu cansado corpo naquele banco que o lugar-comum chama de banco dos réus, e é dos réus mesmo: duro, inglório, abaixo do nível da sala, para esmagar o criminoso moral e topograficamente.Um processo reles, desses que a profissão me arrastava comumente. Na audiência, era ouvido o testemunho arrolado pelo meu advogado, Evaristo de Moraes Filho. O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô ou padrinho, homem bom, simples, calejado no oficio de julgar humanos delitos, e que com a sabedoria da idade e da profissão, antes mesmo de terminar o processo, já dava a devida desimportância àquilo que os advogados costumam xingar de "fulcro penal".Na audiência, ele inquiriu a testemunha de forma cordial, podia não estar conforme a sacralidade da justiça, mas ficava muitíssimo bem no território humano -o único por sinal que eu respeito e considero sagrado. No meio da audiência, rompendo todos os rituais prescritos pelos códigos, entrou um rapaz trazendo cartões que logo identifiquei: eram da antiga loteria esportiva.Sua Excelência interrompeu o depoimento da testemunha para verificar se os furinhos correspondiam ao jogo que havia feito. Comentou em voz alta para a plateia, constituída por réus, testemunhas, promotor, advogados de defesa e de acusação, que já gastara os tubos na loteca e nunca passara dos nove pontos. Mas conhecia um sujeito que já descolara os 13 pontos diversas vezes. E saiu-se com essa verdade: "Não há justiça nesse mundo!".Voltou a interrogar a testemunha com inesperada severidade, até que entraram dois homens com grosso e empoeirado livro. A testemunha contava, com solenes palavras, na qualidade de diretor de um importante jornal do Rio, que convocara a seu gabinete um dos colunistas da casa, a fim de exigir explicações sobre uma nota que fora julgada infame pela autoridade criticada.O juiz interrompeu: "Não vamos perder tempo com esse fuxico de comadres, eu tenho uma escritura para examinar, minha filha casou-se com um cara que é uma toupeira, imaginem que ela comprou um terreno em Jacarepaguá e a besta do meu genro nem foi verificar a metragem exata, do lado direito tem 42 metros, mas na escritura está 24, tenho de ler toda essa papelada, a gente pensa que quando casa uma filha fica livre de problemas, pois o problemas aumentam, e aqui está a besta do pai para consertar as coisas".Mandou que os homens sentassem a seu lado, folheou o livro das escrituras, gastou mais de meia hora discutindo com os caras.Para relaxar, pediu que o contínuo servisse café a todos, menos para ele, que preferiu um chá. Recusou o açúcar, pingou na xícara as gotas do adoçante que tirou da gaveta. Não sem antes declarar que o açúcar era um veneno.Nessa altura, eu me considerei o mais bendito dos réus diante do mais humano dos juízes. Ainda que ele me condenasse, teria valido a pena.
Jornal Folha de S. Paulo, 03 de abril de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0304200933.htm

quarta-feira, 1 de abril de 2009

+ Marcelo Gleiser

Como sabemos?

Como sabemos que o mundo é do jeito que é? Fácil, diria uma pessoa pragmática: basta olhar e medir. Vemos a árvore, a cadeira, a mesa; ouvimos o vento, a música, as vozes das pessoas. Sentimos o calor e o frio na nossa pele. Uma vez que essa informação sensorial é integrada pelo nosso cérebro, construímos uma concepção do real que nos permite funcionar no mundo.
Sabemos aonde ir, o que comer, o que evitar tocar; sentimos o prazer de uma boa refeição, de um abraço carinhoso. Mas e quando vamos além dos nossos sentidos, usando instrumentos para estender a nossa concepção da realidade? Não vemos galáxias a olho nu (talvez Andrômeda, em noites muito especiais) e muito menos um átomo de carbono. Como sabemos que estão lá, que existem?
Quando Galileu mostrou seu telescópio para os senadores de Veneza, muitos se recusaram a aceitar que o que viam era real. Mais recentemente, no final do século 19, o grande físico e filósofo austríaco Ernst Mach se recusava a aceitar a existência dos átomos pois estes, segundo ele, nunca poderiam ser visualizados. Mach e os senadores estavam errados.
O que se vê através dos telescópios é perfeitamente real. Captamos os fótons -as partículas de luz- emitidos (ou refletidos, no caso de planetas e luas) pelo corpo celeste. Se a fonte não emite nas faixas visíveis do espectro, ou está tão longe que não podemos captar fótons entre o vermelho e o violeta, captamos ondas de rádio ou micro-ondas, radiação eletromagnética que nossos olhos não enxergam, mas que nem por isso é menos real.
Quando elétrons pulam de órbita nos átomos, também emitem (ou absorvem) fótons, que podem ser detectados por instrumentos ou, no caso de serem visíveis, pelos nossos olhos. Os instrumentos usados no estudo dos fenômenos naturais são uma extensão dos nossos sentidos. Um dos feitos mais espetaculares da ciência é justamente essa ampliação da realidade, o ver além do visível.
A situação se complica quando a complexidade do fenômeno nos força a filtrar dados, selecionando apenas uma parte do que ocorre. Nossos cérebros fazem isso constantemente, o que chamamos de "foco"; caso contrário, seríamos inundados a tal ponto por sons e imagens que não conseguiríamos fazer nada. Quando olhamos para uma estrela a olho nu ou com um telescópio óptico, vemos apenas parte dela, o que ela emite no visível. Uma visão completa da estrela incorporaria suas emissões no infravermelho, no ultravioleta, no raio X etc. A consequência desse fato é simples, mas profunda: nossa construção da realidade, por ser sempre filtrada, é incompleta. Sabemos apenas aquilo que medimos.
No caso das partículas elementares, o problema é ainda mais grave. O gigantesco acelerador LHC, por exemplo, que deve entrar em funcionamento dentro de alguns meses na Suíça, criará em torno de 600 milhões de colisões entre partículas por segundo. Essas colisões geram 700 megabytes de dados por segundo, mais de 10 petabytes por ano. Um petabyte equivale a mil trilhões de bytes (1015), 1 milhão de discos rígidos com 1 gigabyte cada.
Para tornar a pesquisa viável, os grupos de cientistas filtram os dados, selecionando eventos designados "interessantes". Essa seleção, por sua vez, é baseada em teorias atuais que especulam sobre o que existe além do que já conhecemos. Apesar de as teorias serem sólidas, elas só serão confirmadas pelos experimentos. Existe o risco de que fenômenos inesperados, não-previstos pelas teorias, sejam eliminados pela filtragem dos dados.
Nesse caso, nossas próprias teorias limitam o que sabemos sobre o mundo - uma conclusão um tanto paradoxal.
Folha de S. Paulo, 22 de março de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2203200905.htm

quarta-feira, 25 de março de 2009

Data marcada para morrer
RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO - Um querido amigo morreu na semana passada, depois de 15 dias no hospital. Nesse período, que passou quase todo inconsciente, seu fígado, coração, pressão e pulmões quiseram várias vezes abandoná-lo. Teve também alucinações. Os remédios que lhe aplicaram paralisaram-lhe os rins. Se não fosse tão forte, teria ido logo embora. Até que nem ele aguentou. Em certo momento, os contadores dos mecanismos que tentavam mantê-lo vivo foram zerando, um por um. Tinha 50 anos.
A causa da morte, no relatório médico, foi choque séptico-pulmonar. Mas, por trás desse diagnóstico frio e neutro, havia 30 anos de consumo pesado de álcool e drogas, dos quais os primeiros 20 foram uma sucessão de festas, risos, frases rápidas, sucesso profissional e grande apetite pela vida. A dependência, no entanto, não deixa de cobrar a conta. E o pagamento é a vida.
Seu irmão, quase da mesma idade e com o mesmo quadro, terá destino igual, com a desvantagem de que sua vida nunca foi aquela euforia. A namorada de meu amigo, alguns anos mais nova, também não deve durar muito tempo. Como não precisa trabalhar para viver, pode dedicar-se full time às substâncias que, a esta altura, já nem lhe dão prazer -apenas impedem que passe mal.
Outra amiga sua, exatamente de sua geração, e o filho dela, de pouco mais de 20 anos, gente de classe média e berço fino, estão incrivelmente na cadeia, depois de um desastrado assalto a um taxista, de quem tentaram levar a féria para comprar cocaína. O ex-marido desta mulher, por sinal, há muito já viu sua carreira profissional encerrada pelo ácido. E por aí vai.
Há hoje uma grande incidência de pessoas na faixa dos 50 com data marcada para morrer. São os que acreditaram que a década de 70 iria durar para sempre. Os que viveram para chegar até aqui, claro.
Folha de S. Paulo, 25 de março de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2503200905.htm

terça-feira, 10 de março de 2009

Os buracos do acordo
Como a Academia Brasileira de Letras preencheu as lacunas e contradições da lei ortográfica

Luiz Costa Pereira Junior


A Academia Brasileira de Letras concluiu em dezembro e lança em março a versão mais recente do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, pela Global Editora, à luz das regras ortográficas que entraram em vigor este ano. Nele estão as palavras tal qual o acordo manda grafar. Mas também as grafias sobre as quais a nova lei se contradiz ou se omite. Não foram poucos os casos do gênero, garante o gramático Evanildo Bechara, que liderou a equipe da ABL na empreitada.

- Buscamos decifrar o espírito do acordo para preencher as lacunas, fundando-nos em bom senso e na tradição lexicográfica corrente - diz Bechara.

Bechara explicou a conduta da ABL num debate em novembro, no Anglo Vestibulares, em que também participaram linguistas como José Luiz Fiorin, Francisco Platão Savioli e Maria Helena de Moura Neves.

- Ficamos sem saber se o acordo, na tentativa de simplificação, esqueceu de apresentar todos os casos ou adotou um critério de dizer que, nos casos omissos, prevalece a grafia antiga. Pois o acordo teve uso curioso do "etc.": pôs "etc." até nas exceções. Decidimos, então, que a exceção fica restrita aos casos prescritos na lei como exceção - diz Bechara.

Significa que a ABL ignorou qualquer exceção que não já citada em lei, só as que estão na lista de exceções antes de surgir o "etc."

- O espírito do acordo sugere a queda do uso do hífen. Não fazia sentido "fim de semana" às vezes levar hífen e "fim de século" nunca levar. O acordo resolve isso. Ficam os dois casos sem sinal. Mas nem tudo foi tão fácil interpretar - diz Bechara.

Hifens
O acordo manda ignorar o hífen em expressões compostas por mais de uma palavra, quando não há noção de composição. Mas não há pesquisas precisas sobre perda da noção de composição na maioria dos casos, pondera Bechara.

A lei ignora os elementos repetidos que formam compostos. A ABL, então, estendeu o hífen às onomatopeias e palavras expressivas: "blá-blá-blá", "reco-reco", "zum-zum", "zigue-zague", "pingue-pongue", "xique-xique", "lenga-lenga" e derivados como "zum-zunar" e "lenga-lengar". Casos mais complexos, como "tintin por tintin", são agora grafados com hífen (tintim-por-tintim).

Como acomodar, então, a reduplicação da linguagem infantil em palavras criadas por adultos (titio, papai, mamãe)? A se aplicar a regra, haveria hifens indesejáveis nesses casos. Compreendeu-se, então, diz Bechara, que nesses casos a sílaba não funciona sozinha, não tem individualidade discursiva. Portanto, a composição não terá hífen.

E "bombom"? Não é onomatopeia, mas termo de origem francesa. Escreve-se junto, sem hífen, definiu a ABL. Assim como "bumbum". Mas se "bum" vier só e em vez do segundo "bum" houver outro elemento: com hífen, avisa Bechara.

O acordo omite a existência ou não de hífen nos casos em que "não" e "quase" estão ao lado de outras palavras. A ABL não manteve o hífen. Assim, grafam-se "pacto de não agressão" e "cometeu um quase delito", por exemplo. Sem hífen.

A lei define que terão hífen as palavras oriundas ou derivadas da botânica ou da zoologia. Daí "água-de-coco"; "azeite-de-dendê"; "bálsamo-do-canadá". Mas não "sumo de maracujá"; "suco de limão", pois a preposição não estabelece sentido único. Nem tampouco expressões usadas fora do contexto botânico. Por isso, interpretou a ABL:
Bico-de-papagaio = com hífen, pois é planta.
Bico de papagaio = sem hífen, pois é problema de coluna.

Contexto
A nova lei ortográfica não avança em problemas contextuais. Como locuções não levam mais hífen (pé de moleque, calcanhar de aquiles), assim como "pé de galinha" (ruga) e "pé de galinha" (pata de galináceo). Só o contexto dará a diferença.

Porque caiu o acento diferencial, só o contexto da frase determinará se "Ronaldo para o Corinthians" é com "para" (forma verbal) ou "para" (preposição): Ronaldo conseguiu parar o time ou vai trabalhar nele? Assim "trabalhou à toa" (advérbio) x "estou à toa" (adjetivo), todos sem hífen. E "dia a dia" sem hífen, não importa o contexto. Antes, no sentido de "cotidiano", tinha hífen.

O acordo define que paroxítonas com ditongos ei e oi abertos perdem acento (estreia, hemorroida). Mas não se lembrou, diz Bechara, de paroxítonas presas a regras gerais de acentuação, com ei e oi, que precisam de acento se terminadas em r: "destróier", "Méier", "gêiser". A grafia delas fica como antigamente.

Omissões
As sugestões da ABL às lacunas do acordo ortográfico, que assumem valor de lei no Brasil, suscitam dúvidas. De um lado, acabam com ambiguidades e erros das edições de dicionários impressas no ano passado. Quem consultar versões "atualizadas conforme o acordo", de editoras ávidas em garantir sua cota de venda ao governo, encontrará grafias que nem sempre correspondem às de concorrentes, tampouco às da ABL.

Mas não está dado que Portugal acate as sugestões brasileiras, podendo lançar grafias diversas das propostas pelo Brasil, se e quando tratarem do problema (os europeus resistem ao acordo e a preencher suas lacunas). A ABL cria o fato político de precipitar o debate que os portugueses tendem a levar com a barriga.

O mais contundente dado político da medida da ABL, no entanto, é o de demarcar posição e, com isso, normatizar o que talvez nem precisasse. Um equívoco no uso do hífen não é o tipo de tropeço que atrapalha a compreensão ou afete a imagem da pessoa. Ninguém será tomado por ignorante nem deixará de ser entendido ao escrever "água-de-coco" com ou sem hífen. Antes de dar vazão à ânsia normativista, talvez fosse o caso de fazer como idiomas em que o hífen é, quando não ignorado, deixado ao gosto do freguês. Mas o Brasil escolheu outro caminho. Quem quiser que o siga.

Revista Língua Portuguesa, março 2009. Disponível em http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11707

quinta-feira, 5 de março de 2009

Quando o inverno chegar
RUBEM ALVES
EU ESTAVA ASSENTADO no palco e observava o auditório lotado. Muitas cabeleiras brancas, muitas cabeleiras grisalhas e muitas calvas brilhantes. Era um público de gente velha. Estavam lá para me ouvir. Havia sido anunciado que eu faria uma fala sobre a terceira idade. Mas eu teria preferido que tivessem anunciado uma conversa sobre velhice... Acho a palavra "velhice" mais poética que a expressão "terceira idade"...
Mas essa palavra "velhice" não aparecia no convite. A "linguagem politicamente correta" a havia proibido. Referir-se a alguém como um "velho" era grosseria, ainda que ele ou ela, por força dos anos já vividos, fosse na realidade um velho. Por vezes, a realidade ofende e é preciso criar máscaras e disfarces para escondê-la. Para esconder a realidade da velhice, diz-se, de forma elegante, que se trata de uma pessoa "idosa" ou da "terceira idade".
Eu não me considerava idoso e nem me colocava dentro do conjunto da terceira idade, muito embora um repórter de um jornal da minha cidade tenha chamado de "ancião" um senhor de 50 anos que fora atropelado. Segundo os critérios desse jovem, se eu fosse atropelado seria imediatamente promovido à categoria de "ancião"...
Feitas as introduções e apresentações preliminares, chegou a minha vez. Fiz silêncio. Olhei demoradamente para os idosos que esperavam de mim um elogio à terceira idade e comecei:
"Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a esse glorioso momento da sua vida em que podem se entregar à felicidade de serem totalmente inúteis...".
Aí aconteceu o que eu sabia que aconteceria. Não me deixaram continuar. Fui imediatamente interrompido por protestos indignados. Todos queriam provar a sua utilidade. Um dos idosos contou sobre a sua horta. Um senhora descreveu as colchas de retalhos que fazia. Um outro contou sobre o hobby que desenvolvera fazendo brinquedos artesanalmente...
Deixei que falassem à vontade. Eu os havia provocado de propósito. Falavam movidos pela ideologia da nossa sociedade, que julga as pessoas da mesma forma como julga as lâminas de barbear, as esferográficas e os filtros de café...Uma lâmina de barbear rombuda, uma esferográfica esgotada, um filtro de café usado deixaram todos de ter utilidade e vão para o lixo. O mesmo acontece com os seres humanos que deixaram de ser úteis.
Esgotada a indignação contra mim, acalmados os ânimos, a palavra me foi devolvida: "A Nona Sinfonia de Beethoven é absolutamente inútil. Não há coisa alguma que se possa fazer com ela. Mas uma vassoura, ao contrário, é muito útil. Serve para varrer, tirar o lixo, eliminar as teias de aranha... Vocês estão me dizendo que preferem a vassoura útil à Nona Sinfonia inútil...
Vejam esse poeminha da Cecília Meireles: "No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta. No planeta, um jardim. No jardim, um canteiro. No canteiro, uma violeta. E na violeta, entre o mistério do Sem-Fim e o planeta, o dia inteiro, a asa de uma borboleta".
Prá que serve esse poema? Prá nada. É inútil. Já o papel higiênico é muito útil... Vocês estão me dizendo que, no seu julgamento, o papel higiênico vale mais que o poema...
Repentinamente os rostos indignados se abriram em sorrisos. E aprenderam a sabedoria dos poetas e artistas, tão bem resumida no aforismo de William Blake: "No tempo de semear, aprender. No tempo de colher, ensinar. E quando o inverno chegar, gozar...".
Jornal Folha de S. Paulo, 03 de março de 2009.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0303200905.htm

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Um pouco de humor para retornar ao trabalho!

Ueba! Suzana Vieira bota ovo na avenida!
JOSÉ SIMÃO

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! Acabou a gandaia! O meu dinheiro virou cinzas! Agora todo mundo rebolando. Pra pagar o Carnaval! Cinco dias rebolando na avenida e um ano rebolando pra pagar o cartão!
Em Pernambuco, saiu o bloco Chupa e Faz Tudo. É o bloco do PMDB! Rarará! O Carnaval acabou! Menos na Bahia e no Recife! Que já tão pulando o Carnaval de 2010! Hoje cedo um pernambucano levantou a placa: "Faltam 364 dias pro Carnaval!". E um amigo disse que não tá de ressaca porque ainda tá bêbado!
E a Dilma de abóbora, era Carnaval ou Halloween? Aliás, a Dilma, a dona Marisa e a Marta juntas parecem os Três Porquinhos! E o Sérgio Naya, que morreu na sexta pré-Carnaval em Ilhéus? Aí, a imprensa ligou pro IML de Itabuna, e a mulher: "Aqui não chegou corpo nenhum. E é melhor chegar logo porque eu tô indo embora". Largou o Naya na calçada e foi pro Carnaval. Rarará!
E a Bahia aderiu a mais um ritmo: o kuduro. É um ritmo angolano. Eu vi duas bibas dançando o kuduro no camarote da Band. As bibas do kuduro! Kuduro de tanto tomar mingau! E escola de samba devia ser assim: quanto mais celebridades, mais pontos perde! Como a Ângela Bismarchi conseguiu decorar o samba-enredo?
Ou fez como jogador de futebol: finge que canta o Hino Nacional! E passei o Carnaval assim: joguei boliche no Wii, fiz faxina embaixo da escada e assisti ao Oscar. Mais movimentado que o circuito Barra-Ondina! E a Suzana Vieira pulou tanto, mas tanto, que quase bota um ovo na avenida. Seria a manchete de Carnaval: "Suzana Vieira bota ovo na avenida"!
Pula mais que pulga em sala de espera de veterinário. E ainda disse que o Lula a cantou. Credo! É suicídio social! Diz ela que o Lula disse: "Você é a minha senhora do destino". Olha, se ela fosse senhora do destino dele, ele ainda era torneiro mecânico!
Acabou o Carnaval. Chega de bunda. Vamos encarar o Brasil de frente! É mole? É mole, mas sobe! Daqui a 40 dias. Pingolim de quaresma! Antitucanês Reloaded, a Missão. Continuo com a minha heroica e mesopotâmica campanha "Morte ao Tucanês". Acabo de receber um exemplo irado de antitucanês. É que no Guarujá tem a barraca Caldo de Cana, PASTEL DO LULA! Quem vai querer comer o pastel do Lula? A Suzana Vieira?! Mais direto, impossível. Viva o antitucanês. Viva o Brasil!
E atenção! Cartilha do Lula. Mais um verbete pro óbvio lulante. "Encurralado": companheiro que passou o precioso no ralador! O lulês é mais fácil que o ingrêis. Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje, só amanhã! Que vou pingar meu colírio alucinógeno!

Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2602200903.htm

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Emmanuel Goldstein voltou
BARBARA GANCIA


Em "1984", Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar a insatisfação


VAI COMEÇAR tudo de novo. A Europa não digere bem o diferente, não gosta nem mesmo dos seus. Na Itália, e também na Suíça, cidades separadas por coisa de 40, 50 quilômetros falam dialetos ou línguas completamente diferentes e, muitas vezes, se odeiam.
Na Inglaterra, ainda predomina um sistema de castas. Literalmente até ontem, os filhos da nobreza não precisavam ser eleitos para fazer parte do Parlamento. Para obter uma cadeira na Câmara dos Lordes, bastava que eles se dessem ao trabalho de nascer. As diferenças sociais entre uma casta e outra começam pela maneira de falar. Cada colégio tradicional tem seu próprio sotaque e qualquer inglês sabe reconhecer o ex-aluno de Eton pela maneira como ele fala.
Da mesma forma, a tradição diz que quem nasce na área em que os sinos da igreja St. Mary-le-Bow podem ser ouvidos irá falar cockney, o sotaque predominante entre a classe trabalhadora. Já imaginou ser definido social e culturalmente por toda a sua vida pela maneira como você fala? Na semana passada, os italianos aprovaram uma lei permitindo que os médicos da rede pública de saúde exerçam com naturalidade o ódio aos estrangeiros. De agora em diante, eles podem denunciar quem vive ilegalmente no país assim que o imigrante ilegal pisar no consultório buscando atendimento médico.
Lembra, nobre leitor, quando tudo indicava que o prazo de validade de "1984", de Orwell, havia expirado? Com Fukuyama, nós não chegamos a achar que a luta de ideologias e de classes e tudo o que delas emanava havia chegado ao fim? Pois a atual crise econômica é como um bafo rançoso no cangote. Com ela, a intolerância e a xenofobia que estavam dormentes na Europa acordaram. E de mau humor. Em "1984", Emmanuel Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar o descontentamento da população. Ele é uma espécie de Guerra das Malvinas, que foi confeccionada pelos generais argentinos para distrair a população de suas reais aflições. Parece incrível que, a esta altura, Emmanuel Goldstein possa ter ressuscitado na Europa. Mas ele voltou na pele de um africano, um sul-americano ou um árabe, sem permissão de residência, que ameaça o emprego do europeu. E está prestes a ser linchado em praça pública.
Na noite da última segunda-feira, em Zurique, na Suíça, a advogada pernambucana Paula Oliveira, de 26 anos, teve a infelicidade de ser confundida com Emmanuel Goldstein por supostos skinheads. Paula foi espancada e cortada a estiletadas. Grávida de gêmeas, ela sofreu aborto na noite da agressão e acabou internada em estado grave. Depois de vê-la no hospital, seu pai disse: "Paula recebeu uma centena de ferimentos e teve o corpo todo retalhado; sempre achamos que essas coisas só acontecem no cinema...".
Apesar da pouca idade durante a Segunda Guerra, minha mãe colaborou com os "partigiani" levando e trazendo encomendas em uma cesta de piquenique. E viu um primo adolescente ser morto a sangue frio pelos nazistas. Assistimos juntas à queda do Muro de Berlim pela TV. Ela não parecia muito animada. Perguntei o que havia e ela disse: "Vai começar tudo de novo". Minha mãe pode ter errado o timing, mas nunca se engana sobre o fundamental. Está começando tudo de novo.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1302200912.htm

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Lugar de pobre
CECILIA GIANNETTI

CONTO À AMIGA , via chat, como agora é praxe, sobre a noite anterior. (Fosse a era pré-internet -e eu e a amiga em questão fôssemos ainda bem diferentes do que somos-, falaríamos sobre isso tomando café no inevitável Leblon do Manoel Carlos):-Daí que Fulano chegou na festa meio surtado, né?-E?-Começa aquele cerca-lourenço rico em bafo (bafo mútuo, desconfio, devo ter culpa no cartório também, já que passara pelo bar já umas duas vezes antes) e então o bicho me pergunta: "Você fica no rio até quando? Aondeshch"? ("Aondeshch" = "aonde", com muito álcool e perdigotos).Respondi, com minha inocência de quem acha o metrô uma das maiores invenções de todos os tempos: "Catete. Tô no Catete".Daí o sujeito:- "C*****!, lugar de POBRE".
"Catete, lu-gar de po-bre."Tomei um gole do meu uísque, os dedos das mãos crispadas no vidro do copo metido a fino, daqueles com ondulaçõezinhas nas laterais, que, creio, pretendem simular nossas ondas mentais após a terceira dose. Quase tive medo de que um garçom, ao ouvir do Catete, lugar de pobre, levasse meu Red Label e trouxesse um nacional de estirpe duvidosa.Enquanto sentia descer a queimadura da bebida garganta abaixo, pensei no carimbo que acabara de receber, ali, entre almofadas de plástico do que o homem "mudernoso" concebeu chamar de lounge.Artista talentoso, com rios de fãs que se estapeariam para obter um pedaço de sua cueca como memorabilia, o cara aproveitou minha golada para explanar mais amplamente com exemplos sua opinião:-"É, Catete, Glória, Flamengo, Centro... Esses buracos. Lu-gar de po-bre".O casario antigo, os predinhos reformados, alguns tombados e outros pedindo pra cair, as cheias em dia de chuva (que de maneira alguma são privilégios de "lu-gar de po-bre", pois não são bairros, mas Estados brasileiros inteiros entregues aos alagamentos), as calçadas com movimentação até bem tarde da noite, com dezenas de barracas de comida de rua e badulaques, estes vendedores fazendo as vezes de seguranças particulares da gente que passa por ali chegando tarde do trabalho, uma vez que é raro o policiamento. Coisa de pobre.Quando o rapaz chegou com essa história de "lu-gar de po-bre", outros ébrios desconfortavelmente aboletados em grandes pufes feito paxás perceberam então que talvez estivessem testemunhando o que a patrulha do politicamente correto classificaria, num momento de extrema benevolência, como gafe. Um colega praticamente pediu desculpas por morar na Lagoa. Falou num tom que tinha algo de tatear os rumos da conversa, notando que o desdém do outro pela suposta pobreza poderia ter sido notado também pelos demais. Falou como se o alívio de se esconder de um inferno suburbano ou central lhe desse licença para não pôr os pés na zona norte, quiçá oeste, falou como quem lamenta ter o álibi considerado perfeito pela maior parte das pessoas jogadas em pufes num lounge meio claro, meio escuro. Adivinhávamos as expressões nos nossos rostos, os contornos enrugados por algum desconforto repentino, por vezes iluminados por flashes das luzes da casa noturna.Então é isto: para alguns, a pobreza está fora de moda. Feito as piranhas de plástico, prendedores de cabelos com flores de plástico coloridas e, por que não dizer, feias, que prendem a cabeleira das garotas.Para quem divide os espaços urbanos entre lugar de pobre e de rico, não há noção de que as cidades são mutantes, e os bairros, micro-organismos, que interagem e dependem uns dos outros para ser o que são.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A maturidade do internetês
A grafia popularizada pela internet vai além das abreviações e consolida estilo informal e afetivo da comunicação escrita

Edgard Murano

Desde que a internet começou a popularizar-se, em meados dos anos 90, muita coisa mudou nos hábitos de escrita e comunicação no mundo todo. Primeiro surgiu o e-mail, depois vieram as salas de bate-papo e os comunicadores instantâneos (como ICQ e MSN) e, finalmente, os blogs e as redes sociais (Orkut, Facebook etc.), hoje tão populares entre os adolescentes quanto diários e papéis de carta um dia já foram. Em meio a essas mudanças, com o advento de novos recursos e ferramentas comunicacionais, o internetês - nome dado à grafia abreviada utilizada na internet - acabou se desenvolvendo e cristalizando-se à medida que a rede mundial de computadores evoluiu.

Sobretudo no Brasil, a expansão e a democratização do acesso à rede saltam aos olhos: estima-se que o número de internautas no país chegue a 40 milhões, segundo balanço realizado pelo Ibope/NetRatings em novembro - praticamente o dobro do número de usuários detectado em 2007 (21 milhões à época). Desse total, cerca de 2 milhões têm entre 6 e 11 anos de idade, dado que indica uma adesão cada vez mais precoce da população à tecnologia.

Apenas para se ter uma ideia da quantidade de informações veiculada por esses milhões de usuários, a Microsoft estima que sejam trocadas 8,2 bilhões de mensagens por dia em todo o mundo por meio do MSN, popular programa de troca de mensagens criado pela empresa de Bill Gates. Ferramentas como esta, entre outras baseadas na escrita que a internet oferece, têm acelerado o processo de comunicação entre as pessoas, influenciando a relação delas com a palavra e resgatando o valor do texto escrito como há muito não se via.

Discernimento
Muitas pessoas veem no internetês - essa espécie de "língua" oficial dos jovens conectados - um mal iminente, à espreita de corromper a forma padrão do idioma e de tornar o patrimônio da língua uma grande sala de bate papo, repleta de flw ["falou"], blz ["beleza"] e demais abreviações informais que, em geral, os adolescentes usam para comunicar-se.

- A web não tem culpa de nada. Pessoas com boa formação educacional sempre conseguirão separar a linguagem coloquial da formal. Elas sabem quando dispensar os acentos e quando pingar todos os "is". Os manuais de cartas formais estão aí para provar que sempre houve uma linguagem para cada tipo de ambiente - afirma Arlete Salvador, autora de A Arte de Escrever Bem (editora Contexto).

Para Arlete, o falante do idioma tende a identificar a variante adequada a cada situação de comunicação.
- Cartas de amor são diferentes de um pedido de compras de material de construção, por exemplo. Vejo a web como mais um instrumento de comunicação: ela é o que fazemos dela - argumenta Arlete.

A jornalista chama a atenção para a enorme quantidade de analfabetos funcionais no país, cujo problema não será agravado pela linguagem da internet, tampouco solucionado, por se tratar de um problema de alfabetização, de educação formal.

Trabalho
Hoje, no entanto, o fantasma do internetês assusta cada vez menos as escolas, embora sua sombra ronde o ambiente de trabalho. Há quem garanta até que o brasileiro internetado, com má formação educacional, ainda assim estaria suscetível a aplicar o internetês em situações que não as conversas informais on-line.

- Não vejo problema no internetês se a pessoa que o utiliza apresenta uma boa formação em língua portuguesa. Mas se essa pessoa não aprendeu o português direito e só se comunica dessa forma, ela pode cometer erros. Alguns funcionários mais jovens se acostumaram a não colocar acentos, pois dão mais trabalho na hora de digitar, já que é preciso apertar duas ou mais teclas - afirma Ligia Crispino, professora de português e sócia-diretora da escola Companhia de Idiomas. Para Ligia, o uso de abreviações e de linguagem informal na comunicação interna das instituições é mais tolerado, embora dificilmente chegue ao conhecimento dos clientes, o que poderia "queimar" a imagem da empresa.

Formação
Para João Luís de Almeida Machado, doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do portal Planeta Educação, não é para todos o discernimento sobre quando e onde usar a grafia consagrada na web. Segundo Machado, referindo-se às novas gerações, a digitação rápida e a produção de mensagens instantâneas por meio de comunicadores eletrônicos concorrem com a produção de textos escritos à mão no papel.

- Entre adultos, já formados, capazes de discernir e produzir textos em diferentes formatos, é possível crer que haja suficiente maturidade para lidar com o internetês. Porém, no que se refere às novas gerações, ainda em formação, é grande a confusão que se estabelece entre a norma culta da língua portuguesa e a linguagem coloquial da web. Isso se explica ao levarmos em conta a exposição demasiada dessa garotada à internet e os baixos índices de leitura auferidos no país - justifica.

Geração
O professor Adalton Ozaki, coordenador dos cursos de graduação da Faculdade de Informática e Administração Paulista (Fiap), acredita conhecer bem essa nova geração habituada à internet, apelidada por ele de "Geração Alt+Tab" [alusão ao comando do teclado que permite ao usuário de computador gerenciar várias tarefas ao mesmo tempo].

- Alguns jovens falam com três ou mais amigos simultaneamente em um programa de mensagens instantâneas enquanto escrevem um e-mail, baixam um vídeo, ouvem música e ainda escrevem no Word [programa para edição de textos]. São impacientes. Não são pessoas acostumadas a ler extensos romances ou livros do começo ao fim. Estão acostumados com a linguagem da internet, concisa e objetiva - afirma Ozaki, para quem esses adolescentes, por lerem menos e ficarem muito tempo em frente ao computador, apresentam grandes limitações no trato com a língua portuguesa.

Pessoas que possuem esse esse perfil enviam dezenas de SMS [do inglês short message service] por dia, e são exímias datilógrafas em aparelhos celulares, cujos teclados acanhados são um convite às abreviaturas típicas do internetês. Devido a essa agilidade nos dedos, esses jovens são conhecidos no Japão como oyayubi sedai, ou "geração do dedão".

Identidade
Além do imediatismo e da objetividade que se encontram por trás do internetês, movido pela economia de caracteres no ato da digitação sem prejuízo da mensagem, há um outro fator, que diz respeito à fase da vida em que se encontram seus praticantes, a maioria deles adolescentes. Da mesma forma que o uso de gírias, seu emprego garante ao indivíduo sentir-se parte de um dado grupo, garantiria um sentimento de identificação com uma determinada "tribo". Raquel Nogueira, professora de língua portuguesa do Colégio Módulo, em São Paulo, não encara o fenômeno linguístico como uma mudança para pior, mas chama a atenção para o contexto em que a grafia é empregada.

- Assim como uma "tribo", com suas próprias gírias e seu próprio modo de falar que a identificam, o mesmo se dá com o internetês, que é usado apenas no espaço que lhe cabe, isto é, na internet e nos torpedos SMS - defende Nogueira.

A professora compreende essa grafia como algo restrito apenas à comunicação informal na internet.

- Mas onde e quando se deve usar o internetês, cabe ao professor orientar seus alunos e mostrar que existem vários níveis de linguagem, vários contextos de uso e vários níveis de formalidade na comunicação. O aluno pode expressar-se utilizando abreviações, neologismos, caricaturas e até não usando acentos, mas fora desse ambiente virtual, em outras situações escritas, isso não é bem aceito ainda - recomenda.

Evolução
O coordenador Adalton Ozaki, da Fiap, questiona o uso do internetês sob o pretexto da concisão e da economia de caracteres. Se, por um lado, "vc", "tb" e "kd" seriam formas enxutas de "você", "também" e "cadê" respectivamente, outras palavras não obedeceriam a esse critério "econômico" justamente por serem mais extensas do que suas correspondentes na norma culta do idioma, argumenta Ozaki, caso de palavras como naum ("não"), eh ("é") e neh ("né", que por sua vez é contração de "não é?").

A opinião da professora Raquel Nogueira, contudo, sugere que talvez exista uma mudança mais profunda por trás desse fenômeno, ligada à evolução da grafia, não se resumindo apenas a uma questão econômica:

- A língua é viva e dinâmica, toda a mudança que ocorre é norteada pela fala, pelo povo, e pode demorar, mas ocorre. Assim como aconteceu com "vossa mercê", que virou "você" e que agora está se transformando em "cê", quem sabe o internetês não seja um precursor de outras mudanças, mas no âmbito da grafia das palavras, já que ninguém falaria vc em vez de "você" ou "cê" - questiona a professora.

Grafia do afeto
Outra modalidade na comunicação via internet, que de certa forma também passa pela economia de caracteres, é o popular emoticon [fusão das palavras inglesas emotion, "emoção", com icon, "ícone"]. Amplamente utilizado por internautas para expressar humor e sentimentos durante troca de mensagens, o emoticon nada mais é do que uma seqüência de caracteres tipográficos que em geral simula expressões faciais, tais como :) ou ainda ^_^ , entre outros. No entanto, a maioria dos atuais comunicadores instantâneos já consegue decodificar essas combinações tipográficas e traduzi-las por equivalentes pictóricos, alguns inclusive com movimentos animados, de modo que ao digitar :( a seqüência se transforme imediatamente no desenho de uma "carinha triste".

- O uso de emoticons é típico do internetês. Com um único símbolo, se transmite à outra pessoa o seu estado de espírito, funcionando quase como um ideograma das línguas orientais, onde um símbolo expressa um sentimento - afirma Ozaki, da Fiap.

Neologismos
Para constatar que a internet acelerou de fato a comunicação entre as pessoas ao redor do mundo, basta enumerar a quantidade de neologismos e expressões novas nascidas na grande rede. Muitas delas, como "postar", "deletar" ou "printar", ao mesmo tempo em que são estrangeirismos, caíram rapidamente no gosto popular. Outro bom exemplo, que também ilustra a força do internetês, é a mais recente lista de palavras publicada pelo jornal norte-americano The New York Times. A lista, batizada de Buzzwords of 2008 [Palavras-burburinho de 2008, em tradução livre], destacou palavras com o prefixo tw, em referência ao serviço de blogs Twitter.

De forma análoga, temos no Brasil trocadilhos já consolidados por usuários da internet, tais como "googlar" (fazer uma pesquisa no site de buscas Google), cometer "orkuticídio" (excluir o próprio perfil da rede social Orkut), entre muitas outras palavras e expressões pescadas de atividades virtuais para a "vida real".

Já que o avanço tecnológico é um processo irreversível, assim como as marcas que o progresso vai deixando na linguagem, é necessário admitir essas aquisições como expressões legítimas, sem nunca perder a chance de usar a forma culta da língua portuguesa quando for necessário. Também cabe a pais, professores e educadores orientar seus alunos para que tal interesse reverta-se em produção escrita, não importando se os textos produzidos forem à tinta ou digitados no computador.

Disponível em http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11684.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O iconoclasta

Linguista americano conta em livro como uma tribo do Amazonas o transformou de missionário evangélico em cientista ateu, e como as peculiaridades da língua dessa tribo podem pôr em questão a teoria mais famosa da linguística, a Gramática Universal de Chomsky

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

O americano Daniel Everett, 55, negou Deus por duas vezes. Primeiro o Deus literal, cristão, cuja inexistência declarou depois de conviver por décadas com os índios pirahãs, do Amazonas, com o propósito inicial -frustrado- de traduzir a Bíblia para a sua língua. Depois, o deus dos intelectuais, Noam Chomsky, cuja Gramática Universal, a mais ilustre de todas as teorias linguísticas, passou a ser questionada por Everett justamente por causa de peculiaridades do idioma pirahã.
Professor da Universidade do Estado de Illinois, Everett tem protagonizado nos últimos anos uma verdadeira guerra com os linguistas da escola de Chomsky, os generativistas.
Ele afirma que seus estudos sobre a língua pirahã -iniciados em 1977 quando ele veio para o Brasil a serviço da organização missionária Summer Institute of Linguistics, ou SIL- derrubam a Gramática Universal por uma série de fatores.
O idioma pirahã, diz Everett, não partilha supostos universais linguísticos tidos como essenciais para a Gramática Universal, segundo a qual a biologia humana molda a linguagem e a variação gramatical possível nas diferentes línguas. O principal ponto é a alegada falta de recursividade do pirahã, ou seja, a capacidade de formar frases infinitamente longas encaixando elementos um no outro. No fim do ano passado, Everett lançou no Reino Unido o livro "Don't Sleep, There Are Snakes" ("Não Durma, Aqui Tem Cobra"), no qual desenvolve mais amplamente, para o público leigo, sua tese.
A obra vai muito além da linguística. Ele narra sua trajetória de três décadas entre a tribo, uma verdadeira saga que envolveu mudar-se com a mulher e três filhos pequenos dos EUA para o meio da selva, uma crise de malária que o fez remar por horas e viajar por dias de barco para salvar sua mulher (que insistia para ficar na aldeia, esperando que Deus a curasse) e ameaças de morte. E todo o processo que o fez se transformar de missionário evangélico em cientista ateu.
É cedo para dizer se as ideias de Everett representam um golpe mortal para a teoria chomskiana. (Não seria de todo impensável: o próprio Chomsky protagonizou um episódio desses, quando pôs abaixo em 1959, com um único artigo, toda a psicologia behaviorista de B. F. Skinner.) "Don't Sleep, There Are Snakes" não avança nesse sentido.
No entanto, é um livro que precisa ganhar logo uma versão brasileira, por conta do olhar perspicaz de Everett sobre a vida na Amazônia.
Enquanto militares e ministros do Supremo discutem se as terras indígenas representam perda de soberania sobre a floresta, Everett e outros "gringos" que escrevem bons livros a respeito da região acabam por internacionalizá-la metaforicamente, ao aproximá-la do coração e da mente de seus leitores... em inglês.
De seu escritório em Illinois, falando um português com sotaque manauara, Everett deu a seguinte entrevista à Folha:

FOLHA - O sr. entrou na Amazônia como um missionário cristão e saiu de lá como um cientista ateu. Como aconteceu essa "desconversão"?
DANIEL EVERETT
- Eu nunca me converti até os 17 anos, quando comecei a namorar uma filha de missionários. Eles me falaram sobre as necessidades dos índios do Amazonas. Eu, como novo cristão, pensei que isso seria melhor que ficar nos EUA. Em 1978 eu fui para a Unicamp fazer mestrado, e obviamente não tem muito fundamentalista lá. E comecei a admirar muito o Aryon [Rodrigues, orientador de mestrado de Everett e principal estudioso de línguas indígenas do Brasil, hoje na UnB]. Uma vez ele me convidou para uma palestra que o Darcy Ribeiro foi dar na Unicamp quando voltou do exílio. A ideia de chegar para o Darcy Ribeiro e dizer que ele ia para o inferno sem Jesus Cristo parecia tão ridícula que eu comecei a pensar sobre essas crenças. Quando comecei a falar com os pirahãs, fiquei no meio do mato conversando com um grupo de pessoas que nunca manifestaram interesse nesse Deus do qual eu falava.
Pensei: "O que eu estou dizendo realmente deve ser muito irrelevante para eles". E finalmente eu vi que intelectualmente eu não podia mais sustentar essa crença em mim.

FOLHA - Como é a sua relação com os missionários do SIL hoje?
EVERETT
- Tenho relação próxima apenas com minha filha é missionária lá, e o Steve Sheldon, que trabalhava entre os pirahãs antes de mim. Eles não viraram meus inimigos, mas sou contra o trabalho Minha filha e eu não falamos sobre isso.


A ideia de chegar para o Darcy Ribeiro e dizer que ele ia para o inferno sem Jesus Cristo parecia tão ridícula que eu comecei a pensar sobre essas crenças

FOLHA - O sr. conhece algum caso de evangelização que tenha sido danoso para os índios?
EVERETT
- Você tem entre os índios banawás e os índios jamamadis os missionários mais conservadores. Os banawás tiveram um casal pentecostal entre eles e um casal do SIL. Você tinha dois casais de missionários num grupo de 79 pessoas.
É demais. Você tinha índios que achavam que Deus ia curar picada de cobra, malária, essas coisas. Os missionários sempre justificam sua presença nas aldeias pelo trabalho médico.
Hoje, com a Funasa assumindo um papel importante nas aldeias, eu não vejo nem essa necessidade para os missionários.
Acho que pregação, traduções, "testemunhos" etc. são superstições e não vejo como superstições podem ajudar os índios.
É a mesma coisa de dizer que os índios não podem viver bem sem crer em Papai Noel.

FOLHA - O sr. publicou suas conclusões sobre a língua pirahã num livro para o público leigo, quando o procedimento padrão é publicar em um periódico científico. O livro vem em vez de uma publicação científica ou além dela?
EVERETT
- Além. Vai sair em setembro. A revista "Language", a mais importante da linguística dos EUA, terá um artigo de 50 páginas atacando meu trabalho e uma resposta minha do mesmo tamanho. Eu não considero meu livro um livro principalmente linguístico. Ele trata de aspectos da minha vida e da minha interação com os pirahãs.

FOLHA - Qual é sua crítica à Gramática Universal de Noam Chomsky?
EVERETT
- A Gramática Universal tem muitas formas. Se você tomar a ultima versão dela, nas formulações mais recentes do Chomsky, a GU (Gramática Universal) é a "teoria verdadeira da base biológica da gramática". Bom, se aceitarmos isso, a proposta perde todo o interesse, porque ninguém duvida de que os humanos têm uma biologia que é responsável pela linguagem. Mas as versões anteriores atribuíam princípios e parâmetros à Gramática Universal. No trabalho com Tecumseh Fitch e Marc Hauser [de 2003], Chomsky fala ainda de outros conceitos, a Faculdade Ampla da Linguagem e a Faculdade Estrita. Eles dizem que "talvez" a única característica específica da faculdade estrita seja a recursividade. Isso faria parte dos genes. Tudo bem. Então, digamos que haja uma língua sem recursividade -candidatos além do pirahã incluem o nunggubuyu, da Austrália, e o hixkaryana, do Brasil. Bom, Chomsky diz que nem todas as línguas são obrigadas a manifestar a recursividade. Mas, se existe uma língua sem ela, poderia haver duas? Três? Se uma língua pode existir sem recursividade, todas poderiam. Então que sentido faz dizer que recursividade é fundamental mas não é obrigatória?

FOLHA - Como a academia tem reagido às suas ideias?
EVERETT
- Você tem quatro tipos de reação. Há pessoas que não gostam de Chomsky e vão aceitar qualquer argumento contra Chomsky; você tem os chomskianos, que não vão aceitar de jeito nenhum um ataque à Gramática Universal; você tem pessoas que têm inveja, ou reagem mal, a toda a publicidade que eu venho recebendo; e tem pessoas que querem saber onde estão os dados. Esta é a reação mais saudável.

FOLHA - O sr. diz que o pirahã é uma língua única, que coloca em questão a teoria chomskiana. E, ao mesmo tempo, diz ser o único não-pirahã a dominar a língua. Então a questão permanecerá em aberto até alguém mais aprender a língua e confirmar ou não os seus achados.
EVERETT
- Ou até um pirahã fazer um doutorado em linguística. Eu já levei pessoas para fazer experiências. Há 20 anos, quando eu publiquei um artigo sobre o sistema de acentuação na língua pirahã, isso criou uma controvérsia na linguística. Então o maior foneticista do mundo, Peter Ladefoged, foi comigo para a aldeia, fez testes e agora isso é aceito entre os linguistas.
Há maneiras de fazer a experiência sem usar a língua, ou usando a língua muito pouco.
Minha hipótese é falseável. Você tem de planejar as experiências, ir lá fazer e contar a história. Mas é difícil. Eu já trabalhei com vários grupos indígenas do Brasil e os pirahãs são o único grupo com o qual eu não posso trabalhar usando o português.
É falseável, mas não vai ser fácil. Eu sei que não vai ter uma aceitação de 100% dos linguistas. Mas eu não acho que os pirahãs sejam um caso único em tudo. Estou dizendo que é um caso primeiro de um contraexemplo da teoria de Chomsky.

FOLHA - Chomsky diz que o sr. entendeu tudo errado.
EVERETT
- Meu primeiro aluno de doutorado foi o professor Ed Gibson, que trabalha no departamento do Chomsky no MIT.
Ele não conseguiu esse emprego porque teve uma má orientação. Eu passei um ano com o Chomsky e em todos os anos em que eu praticava a teoria generativa o Chomsky me deu cartas de recomendação. Só agora, que eu estou tentando dizer que ele está errado, é que eu não entendo a teoria.

FOLHA - O sr. diz que os pirahãs são monoglotas, mas eles estão em contato há 200 anos. Como é possível?
EVERETT
- Alguns pirahãs falam um pouquinho de português, ainda mais os termos de troca.
Mas tem outro fenômeno interessante: às vezes, quando os pirahãs falam com um comerciante, eles usam palavras da língua geral, e o comerciante responde em língua geral [mistura de tupi, português e outras línguas amazônicas]. O comerciante acha que está falando pirahã e o pirahã acha que está falando português.

FOLHA - O sr. apresenta no livro uma ideia chamada "princípio da experiência imediata", segundo o qual o ambiente torna a gramática pirahã tão peculiar. Mas há várias outras tribos que compartilham esse ambiente e não têm essa mesma limitação gramatical.
EVERETT
- Essa preocupação com a experiência é comum na Amazônia. Os pirahãs a valorizam mais que outros grupos. A evidência é esse termo que eu menciono no livro, "xibipíío" (pronuncia-se " "ibipíu"), algo que entra ou sai da experiência imediata. Esse é um termo que eu nunca vi em nenhuma outra língua amazônica. Digamos que haja um certo número de coisas do ambiente que são comuns a todas as línguas amazônicas. Entre elas, cada língua tem o direito de valorizar ou ordenar as coisas de forma diferente. Uma cultura pode dizer que a experiência imediata é importante, mas é colocada num degrau mais baixo da escala de valores. Os pirahãs colocam esse princípio, que é compartilhado com outros grupos amazônicos, muito alto na escala de valores deles. E isso explica coisas muito particulares da cultura e da língua deles e que são raras em outros grupos, como a ausência de números.

FOLHA - No ano passado, um general disse que a política indigenista do Brasil é caótica. Diz-se também que é muita terra para pouco índio. O sr. concorda?
EVERETT
- Os pirahãs, que são 300 pessoas, junto com os parintintins, que são menos de cem pessoas, têm 330 mil hectares. Eles usam toda essa terra. E para os pirahãs ela deveria ter o dobro do tamanho. Os índios, tanto no Brasil quanto nos EUA, foram conquistados por culturas europeias, e essas culturas devem reconhecer o dever de deixar os índios em suas áreas tradicionais vivendo sem interferência, se quiserem.

FOLHA - Nos EUA essa discussão está encerrada, não? Os índios têm terras grandes e o governo dos EUA não acha que elas sejam uma ameaça à soberania nacional.
EVERETT
- É, mas o governo dos EUA tirou os índios dos melhores lugares há mais de cem anos. Os cherokees tinham terras lindas no Kentucky e no Tennessee e foram removidos para Oklahoma, que não tem nada! Agora, que eles descobriram como ganhar a vida com cassinos, as pessoas questionam seu direito de controlarem as reservas, porque fazem concorrência com Las Vegas.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Estatize já
Relatório a ser apresentado à ONU sugere que governos distribuam maconha a fim de reduzir danos causados pela droga ANDY COGHLANDA "NEW SCIENTIST" O que devemos fazer para minimizar o mal que a maconha pode causar à saúde e ao bem-estar de seus consumidores e da sociedade como um todo? A resposta, segundo um relatório de destacados acadêmicos e assessores governamentais, é mudar a lei para permitir que o Estado prepare e distribua a droga para uso recreativo. Essa proposta polêmica foi feita por uma comissão reunida pela Fundação Beckley, organização beneficente britânica dedicada ao estudo científico das substâncias psicoativas. "Os danos causados pela proibição são piores do que os decorrentes da própria substância", diz Amanda Feilding, fundadora da Fundação Beckley. As ideias serão expostas em março numa reunião da Comissão das Nações Unidas sobre Narcóticos (UNCND), em Viena. Depois, um relatório segue para uma reunião da Assembleia Geral da ONU que vai determinar a política sobre drogas para a próxima década. A maconha é hoje a droga ilícita mais consumida no mundo. As cifras mais recentes indicam que em 2006/07 cerca de 166 milhões de pessoas de 15 anos ou mais -ou seja, 3,9% da população dessa faixa etária- usaram-na regularmente. Apenas 1% da população mundial consome outras drogas ilegais. "Porta de entrada"As evidências reunidas pela comissão Beckley indicaram que a maconha prejudica a saúde dos que a consomem em grande quantidade, especialmente dos que começam a fazer uso dela na adolescência. Esses usuários correm risco aumentado de doenças mentais, pulmonares e cardíacas. Eles também têm mais chance de abandonar a escola cedo, de se envolverem em acidentes de trânsito e de serem maus pais. O relatório também encontrou evidências de que a maconha pode atuar como "porta de entrada", elevando a probabilidade de que seus usuários experimentem drogas mais prejudiciais, como a cocaína. O relatório detalha um aumento acentuado na potência da maconha, com o nível de THC -a substância química que provoca o "barato"- geralmente sendo o dobro ou o triplo do que era dez anos atrás. Isso, segundo o relatório, é em parte fruto da tendência ao cultivo da planta em estufas. Apesar dos perigos, o relatório conclui que ela é muito menos prejudicial do que outras drogas. O relatório observa que até hoje só foram documentadas duas mortes por overdose de maconha. Esse número contrasta com as 200 mil mortes anuais de todas as causas atribuídas a outras drogas ilegais, as 2,5 milhões de mortes anuais relacionados ao álcool e as 5 milhões ligadas ao tabaco. Venda regulamentadaComo a posse de cânabis é ilegal em boa parte do mundo, suas consequências prejudiciais se estendem para além dos danos possíveis à saúde imediata. Em especial, seus consumidores correm o risco de sofrer punições e ganhar ficha criminal. "Se você não acha que ser preso é um mal, você é impossível de convencer", diz o criminologista Peter Reuter, da Universidade de Maryland, coautor do relatório. "Nos EUA, 750 mil pessoas foram presas em 2006, e eu vejo isso como um dano substancial." O relatório recomenda que a maconha seja vendida legalmente, sujeita a critérios rígidos que garantam que não seja suficientemente potente para causar problemas psicológicos. Isso, diz o documento, permitiria a imposição de uma restrição rígida de idade, impedindo crianças de adquiri-la, e impediria a ação das quadrilhas criminosas que a traficam. Os revendedores licenciados não poderiam oferecer outras drogas aos compradores de cânabis. O quadro de referência das leis antidrogas em todo o mundo hoje é fixado pela Convenção Única de 1961 sobre Drogas Narcóticas. Embora a convenção preveja que todos seus signatários tornem ilegal a posse de cânabis, alguns deles vêm fazendo experimentos com descriminalização. A Holanda, por exemplo, não prende pessoas que estejam de posse de pequenas quantidades. Crime x infraçãoA legalização proposta pelo grupo Beckley provavelmente enfrentará oposição em Viena. O receio é que afrouxar as leis em relação à maconha enfraqueça todo o esforço internacional para combater o uso de drogas recreativas. "A cânabis é o ponto mais vulnerável de todo o edifício multilateral", diz Antonio Maria Costa, diretor executivo do UNODC. Os EUA se opõem a qualquer medida de legalização, temendo que ela resulte numa nação de drogados. Já os autores do estudo Beckley, entre outros, argumentam que a punição não reduz o consumo de cânabis e causa danos ela própria. Um estudo feito em 2000 por Simon Lenton, do Instituto Nacional de Pesquisas com Drogas da Austrália, comparou o que acontece com pessoas no leste do país, onde a posse de maconha incorre em castigo criminal, com as do sul, onde os consumidores recebem apenas avisos de infração. Cerca de 32% dos "criminalizados" relataram consequências adversas em seus empregos, contra apenas 2% dos "infratores". Feilding admite que as propostas de seu grupo podem não encontrar eco entre muitos dos presentes na reunião em Viena. Mas o simples fato de uma alternativa à proibição total da cânabis ser discutida já constitui um avanço, afirma.
Tradução de CLARA ALLAIN